papéis sobre a mesa

Destacando da cartela a pílula pela manhã, deu-se conta: quarta-feira!

Chegou atrasada ao encontro, a roupa molhada contra o corpo, surpreendida pela chuva que destruíra quase a hora inteira de preparo em frente ao espelho. Tirou a sandália encharcada, desarmada de cerimônias pela irritação.

A umidade na pele fazia com que calçar-se fosse incomôdo e deixou os pés nus. Havia uma tatuagem desenhando um caminho de pequenas flores sobre o peito do pé esquerdo. Ao vê-la, ele refez mentalmente o percurso de beijos que começava ali e ia até a virilha dela. E, preso à cama para onde fora transportado pela antiga lembrança, ignorou o aborrecimento dela diante do inesperado e apenas puxou a cadeira para que se sentasse, sem registrar-lhe as queixas.

Àquela hora, após conversarem meia dúzia de bobagens, os papéis já estavam sobre a mesa, entre os dois cálices de vinho que demarcavam o terreno de cada um. Ele brincava com o guardanapo, inventava figuras de formas desconhecidas como quem estivesse empenhado num origami dificílimo. Pretendia parecer natural. Ela mantinha as mãos no colo, escondidas, ligeiramente trêmulas, enquanto passava os olhos sobre as linhas do documento sem ler nenhuma palavra. Pretendia parecer à vontade, embora fizesse mentalmente as contas de quando deveria voltar às pílulas, abrindo mão, entre tantos papéis, da maternidade. Voltar a relacionar-se era atitude recente, ainda atrapalhava-se, não queria arriscar-se. Era o que pensava, tentando arrumar um jeito de tecer tal comentário para sentir-se melhor – já lhe bastavam os cabelos desarrumados a enfraquecer-lhe a estima diante da fria papelada da separação.

E o atingiu, a ponto de comentar com ela, fingindo displicência, que tinha saudades da tatuagem, o que a fez sentir brevemente feliz pela memória maliciosa da intimidade que se permitiram um dia. Ao lado daquele homem, possuíra muitos sonhos: noites, danças, viagens, casas a construir, filhos a criar. Doces como os sonhos que temos quando crianças e soam tão absurdos quando crescemos que são recordados às gargalhadas. Ela ainda não era capaz de rir dos sonhos de que se desfizera. Ainda doíam. Por isso, no minuto seguinte, estaria dissociada do quarto íntimo trazido pela memória, bem como dos beijos e das juras, recompondo-se ao perceber que, no dia em que ele a deixara, também usava os cabelos soltos como agora. A chuva grudara os fios sobre seu rosto, ressaltando-lhe ainda mais a cor escura em contraste com a pele muito clara. Ela os jogava para trás e voltavam a cobrir-lhe os olhos, libertos do fixador que usara antes do penteado desmanchado pela tempestade. No dia passado, foram as lágrimas a colar-lhe uns poucos fios, que ela afastava com as mãos, tentando evitar o tom dramático da despedida. Mas seu gesto era lento e sentia-se claustrofóbica. Fora num dia de sol, ainda assim, na lembrança, fora num dia cinza.

Estava confortável agora. Não fossem os dedos enrugados e os pés frios estaria absolutamente confortável. Assinou os papéis. Prendeu para trás o cabelo com um discreto pregador de flor – o tom primaveril demonstraria a leveza que desejava que ele já julgasse conquistada – e abriu um sorriso ao homem com quem dividia a mesa. Escolheu seu prato no menu, como se fora ali para almoçarem.

Sorriu para o garçom. Sentia-se bonita com os cabelos domados, era preciso que alguém a achasse bonita também, queria estar bonita sob o olhar de outro homem diante dele. Demorava a fazer o pedido enquanto elaborava outro sorriso, ligeiramente provocante, elaborava as palavras também, mas que dizer, a quem provocava?

Ele guardou o documento na maleta e se refrescou na brisa que veio da rua quando alguém entrou no restaurante. Passara bem pela última oportunidade de ver sua liberdade barganhada com bens ou pedidos de justificativa, como se pudesse alguém justificar a morte ou a vida, mesmo de um sentimento. Livre, de imediato passou a admirá-la mais; a mulher à mesa puxara um assunto cotidiano, soava divertida contando os problemas do trabalho, histórias de personagens que ele conhecera, podia até imaginar-lhes as reações. Não falava insistentemente nos filhos que ele não queria ter e não lhe criticava o silêncio. Ao contrário, trazia ao ambiente histórias leves, tolas, engraçadas até. Naquele restaurante, ele poderia viver com ela.

Ela se mostrava alegre, ainda tinha os pés descalços, e, esquecida do aborrecimento inicial, a garrafa de vinho na metade, falava bastante, soava-lhe como uma melodia conhecida, como as canções da infância que nos entoam para afastar o medo. Ele a olhava atentamente e tentava adivinhar, sem êxito, o desenho do sutiã sob a blusa molhada. Estranhamente se sentia num encontro às escuras. Quem mesmo lhe havia apresentado àquela mulher?

Então lançou aquele olhar sobre ela… simples gesto impensado que desmontou a tarde.

Acostumada à transparência, embaraçou-se ao sentir-se em destaque, apoiou os talheres sobre o prato, fingiu limpar os lábios para poder devolver o guardanapo e às mãos ao colo. Dispensou a sobremesa e quis parecer atrasada para algum lugar, embora não houvesse outro lugar além dali, daquela mesa onde fechara um capítulo da vida, sem ter rascunhado qualquer rumo para sua história.

Esperando pela conta, um e outro pensavam no fim.  Quanto tempo depois se esboçam caminhos? Quanto depois se pode marcar um encontro como esse, fechar a página do livro em que se sela uma história em comum e combinar seguir em frente? Para onde seguem as personagens depois do fim? Acostumado a tê-la, sentiu-se esvaziado. Mesmo rasgando os papéis, ela já não seria sua. Mesmo voltando à casa, custar-lhe-ia reconhecer-se entre os móveis que ela substituíra. Estavam num umbral. Estranhos e modificados, sequer se reconheciam.

Encerraram o encontro com beijos e promessas de telefonemas. Partiram.
Ela seguiu de volta à casa sob a chuva a que, estranhamente, se aliou, tentando esvaziar a mente da sensação de que fracassara. Amando-o durante anos e mesmo depois, fingindo deixar de amá-lo, fracassara.

Ele a assistiu afastar-se pensando que não fora tão difícil seguir em frente.

Pior seria seguir sem poder olhar para trás.

5 comentários em “papéis sobre a mesa

  1. Aninha

    Confesso que vc sempre surpreende e impressiona. Escrever é um dom muito especial e só presente em pessoas realmente especiais e sensíveis. Parabéns!!!

    Só mais uma coisinha….onde vc arruma tanto tempo…Bjs
    Vania

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  2. Querida Ana… Que lindo!! Estou extasiada com seus contos e poemas tão cuidadosamente escritos… Que delícia lê-los (li todos)!! Tem que virar livro, já!!!! Vc é uma artista…

    “E há poetas que são artistas
    E trabalham nos seus versos
    Como um carpinteiro nas tábuas!…”

    Bjs da sua mais nova leitora, ávida por novos contos e poemas!!! 😉

    Michelle

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  3. Vania, Michelle, Delano e Marcio, obrigada pela visita e pelos comentários carinhosos e, acima de tudo, pela “força”! Vcs estarem por aqui tem um valor imenso pra mim, acreditem.
    Vania, continua faltando tempo – eu queria poder exercitar mais minha escrita. Mas ela vai tentando sobreviver a nossa rotina tão sobrecarregada. rs.

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