vertigem

O conto abaixo foi escrito para o concurso “Contos do Rio”, edição 2010,  do Caderno Prosa e Verso do Jornal O Globo.  A proposta de cenário era a cidade do Rio de Janeiro e a inspiração, a foto abaixo (“Nuvem sobre o Largo da Carioca”, de Marcia Foletto).  Não ficou entre os finalistas mas está aí para ser dividido com vocês. 

A foto de Márcia Foletto que deve servir de inspiração para os contos do concurso

Abriu os olhos, deitado sobre o asfalto quente do Largo da Carioca. Do chão, os prédios inclinados e o céu incerto sobre si o surpreendiam pela  inesperada beleza.   

Acordou com uma menina debruçada sobre ele. Sentira sua respiração nas bochechas antes de enxergar-lhe a imagem distorcida pela proximidade. Ela lhe sorria. Da boca levemente aberta, vinha o aroma doce de framboesa da bala que mastigava.  A mãe gritava seu nome com um lanche na mão mas a menina estava presa à curiosidade: um homem deitado na rua era pura travessura – não lhe alcançava a fragilidade.  Entre todos que o cercaram, ninguém estava mais atenta do que ela.

Ele tentava explicar o mal estar aos homens que o ajudaram a levantar-se e sentar-se na cadeira da lanchonete, mas que logo se desinteressaram dele.  Só a menina continuou a seu lado, o joelho de presunto roído numa das mãos, os olhos grandes e arredondados observando-lhe o desenho das primeiras rugas e o cheiro bom que vinha da roupa que vestia.

Contou à criança que, menino como ela, também vinha ao Centro com a mãe. As mulheres desfilavam pela Ouvidor e se apraziam naquele passeio bobo. Sua mãe escolhia modelos numa luvaria ali perto, presenteava-o com um bombocado de laranja na Casa Manon ou um lanche na Confeitaria Colombo. Era a paga pelo aborrecimento de usar blusa engomada e sapato social, embora achasse engraçado andar por ruas onde não se podia caminhar de sandálias nem calças curtas. Antigos tempos, ria-se. Anos depois, a saudosa figura da mãe vivia nele e era profunda a alegria por lembrar-lhe a expressão feliz, quando se sentiam especiais de mãos dadas por aquelas ruas.

Nem só nas praias pulsa a cidade, queria dizer à menina que o escutava. Mas, doente e menino, emocionou-se, com saudade dos cuidados da mãe.  Senão, continuaria a dizer-lhe que a cidade vive também naquele nicho nervoso que contrasta os arranha-céus da modernidade com o bondinho que partiria, em instantes, para Santa Tereza e a futurista catedral com o clássico mosteiro diante do qual descansavam, no instante em que se acendiam as primeiras luzes. Vivia no som ao longe que trazia à memória a gafieira da Praça Tiradentes e a lembrança do perfume da morena com que sambou num passado mais recente. Vivia, ainda, da energia dos homens cujos pés apressados se despiam no contato com a areia da praia, no final de semana, e da gente que assistia ao mágico que se apresentava sobre um caixote mais à frente, roubando-lhe, definitivamente, a atenção da garota.

Permaneceu sentado, hipnotizado pela enorme nuvem que rondava os prédios e era um desenho perfeitamente redondo, uma forma única. Clareada por um resto de sol, abrigava no centro a escuridão que se aproximava. Desejava que a nuvem continuasse a mover-se. Fixou os olhos nela. Estática. Pesada. Contrariava-o. Não ia em direção à Lapa onde a noite já despertara. Os lampiões na Lavradio já se acendiam, por certo. Parara sobre o largo, na sua dualidade de tons, parecendo espreitá-lo, aumentando o calor e o incômodo que já sentia por ver a massa de pessoas correndo na direção da condução. Recebeu, com alívio, o caldo de cana que o rapaz da lanchonete lhe trouxe para aliviar-lhe o mal estar, ignorando o laudo médico que o homem recebera poucas horas antes.

Bem perto dali, um saxofonista, na entrada do metrô, abafava as buzinas dos carros da Chile com uma canção melancólica que o atingiu profundamente.  Sentiu-se grato por pertencer àquele cenário. Nuvem sobre o Largo da Carioca. Luzes da noite nascendo sob fundo musical. Passos nervosos sobre o chão da cidade. Meninos descamisados, pés descalços, sentados adiante. Homem disfarçado de mágico alegrando a roda. Ele, menino amedrontado, fingindo-se grande diante do diagnóstico fatal.

Pudesse, dançaria a música do sax com a menininha que cheirava à framboesa e deixou-o, contando-lhe, ainda, que a mãe sempre dançava com ele quando queria alegrar-se. Que eram felizes os dias em que corria por Ipanema – o pai puxava-lhe as orelhas por jogar areia nos outros -, tão felizes que pareciam dias com trilha sonora, embora a música fosse só risadas, ondas batendo e brisa no ouvido. Pudesse, voltaria ao colo dos pais para ouvir canções de amor e de ninar.

Andou sozinho até encontrar abrigo num bar da Lapa, por onde jovens se espalhavam em sinuca, cerveja e algazarra.  Esta é a hora em que o Centro acolhe a gente que passa por ali, pensou. Precisava dessa acolhida por um tempo. Voltar a casa era tarefa adiada. Não queria passar adiante a notícia ruim recebida, como se a palavra pudesse materializar o que lhe anoitecera a vida. 

Choveu. A nuvem era de chuva, afinal. Nuvem que se desfaz no céu para dar passagem ao sol. Alegrou-se. Com o céu limpo e as idéias clareadas, talvez pudesse livrar-se da noite que derradeiramente o envolveu. E continuar a caminhar.

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