quando já não é mais hora

De nada adiantou sentar-se diante dela, diminuindo lugares no sofá da sala pouco iluminada pelo abajur antigo.  Nem incumbí-la da fácil tarefa de arranjar-lhe um pano de chão para apagar as pegadas molhadas, originadas na chuva que caía na rua.  Frustrava-se a tentativa de reeditar a intimidade que há pouco ainda tinham, enxugando os pés, fazendo piadas ou ocupando espaço entre as estatuetas e os cristais da casa que quase fora sua.

Ela o recebeu carinhosamente. Sua presença era confortável, quebrava o silêncio a que se acostumara.  Contudo, permanecia isolada da cena, assistindo de fora a naturalidade com que se deslocava entre os móveis e os cômodos da casa que deixara há poucos dias; para ela, há uma vida.

Sentia-se descolada da relação que tiveram.  Na verdade, de todas as relações que estabeleceu desde então.  A cicatrização da sua tristeza ocorria em meio a uma solidão anterior a tudo, às conexões com o mundo. Uma solidão existencial.  Que sugeria a ela que perder-se do sentimento que nutriu por ele a fez desconectar-se.

Ele quis convencê-la de algo, ser perdoado, dizendo “não prometi ficar”.  Ela apenas pensou que também não prometera amá-lo, sequer sonhar com ele.  No entanto, amou e sonhou. E sua ausência a devastou.

Sentindo o vazio em que caíram suas palavras, ele reviveu as lembranças de várias cenas que seu amor criara, como se a sala pequena não pudesse comportar toda a história e precisassem sair dali, ganhar outro ambiente em que pudessem continuar a narrativa.  Recriou memórias para mobilizá-la de alguma forma, fazendo-lhe um convite para o jantar ou  levantando-se da poltrona para acender a luz.  Porque, apesar de amável, ela não contribuía muito para conversa, como se a quisesse finalizada.

Ao contrário dele, as figuras lhe surgiam e explodiam suavemente no ar, como bolhas de sabão, que nos encantam por um instante e somem e voltam a surgir e a sumir, sempre nos lembrando que são  frágeis. Ela não fixava as imagens. Na verdade, vinha tentando esquecê-las, querendo abrir espaço para uma nova história.

“Não prometi ficar” – ele disse de novo ou ela achou que dissera – “mas quero ficar” – continuaria a dizer, se ela tivesse deixado, numa brecha para talvez dizer que ainda a amava. Mas a frase perdeu força solta no ar porque ela se concentrara na chuva lá fora e o mundo, de repente, parecia-lhe angustiante:  lágrimas, relâmpagos, rua vazia, bolhas de sabão.

Mas não se angustiara de fato, embora buscasse em si um sentimento qualquer.  Ao lado dele, podia ouvir-lhe a voz,  cheirar a umidade na sala, vinda do casaco de couro encharcado, sentir calor  porque fechara as janelas e sentir fome porque o jantar atrasara diante da visita inesperada – ele voltara para trazer-lhe as chaves de casa, embora, paradoxalmente, quisesse-as de volta.

Enquanto o via usar sua alegria como elemento de sedução, ela o invejou por ainda estar repleto de sentimentos. A ela, haviam restado apenas as sensações físicas, ainda que fossem percepções do ambiente ao redor.

Lembrou-se, então, que ambos sempre tiveram diferentes percepções. Por causa de um pano de chão no banheiro, por exemplo, brigaram pela última vez.  Ela o queria colado ao box, para não pisar no chão frio após o banho morno.  Ele o queria sobre o capacho, sobrando um pouco para fora, para que os pés  se secassem antes que as pegadas molhadas tornassem o chão escorregadio.  Ela evitava o resfriado, ele, um acidente.  Ambos estavam certos nos seus argumentos.  Ainda assim, brigaram porque achavam que o outro estava errado.  Pode-se dizer que, por causa daquele pano, muitos rancores surgiram.  Talvez por isso, dias depois, ele tenha ido embora.

Vendo-a distante, levantou-se e deixou as chaves sobre a mesa de jantar, estendendo-lhe o pano com que secara as marcas da chuva.  Ela o colocou sob seus pés, gentilmente, no corredor liso, para que não patinasse sobre o piso molhado, protegendo-o de um acidente até a porta do elevador. Ele lhe sorriu abertamente mas com a melancolia de quem sabe que, apesar do amor, a hora de amar já passara.

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