imersa

Saltou do ônibus dois pontos antes de chegar em casa porque queria ver, de perto, o mar.

Cansou-se de ficar presa no trânsito em direção ao previsível roteiro, somente como espectadora do movimento das ondas. Então desceu, tirou a sandália e caminhou até a arrebentação, deixando a água tocar a barra de sua calça.

Queria mergulhar. As ondas vinham em intervalos curtos, não lhe davam tempo para decidir se levava adiante a idéia ou apenas mantinha-se contemplativa. Naquele fim de tarde, poucos banhistas se arriscaram no mar.  Havia bandeiras vermelhas e sabia que, quanto mais avançasse, mais seria difícil resistir à força da correnteza e maior seria o medo de ser tragada.

Mas ela não deu à sinalização de perigo a mesma importância que deu ao seu desejo. A vontade era grande, arriscou-se. Na areia, presa num redemoinho mental, ganhava coragem, observando a paisagem: os espaços vazios na praia, o horizonte muito distante, o barulho do mar isolando os sons da cidade.

Ficou imóvel por um tempo, sentindo a areia fina, trazida pelo vento, arranhar a pele do seu rosto, ouvindo as conversas cortadas das pessoas que passavam ao lado, o trote dos corredores que, em sentido contrário, venciam a força do vento e encontravam resistência na areia molhada.

Voltou à parte seca, onde deixou a bolsa com os seus pertences: chaves de casa, dinheiro, documentos, maquiagem e celular. A bolsa era o seu universo minimizado, a essência das suas referências. Tudo o que continha precisava ser protegido da água. Deixou, também, as roupas e os sapatos, confiando que não haveria, na praia vazia, quem notasse que usava lingerie e não biquíni.

Jogou-se, então,  num mergulho  profundo. O mar era só silêncio, uma pressão surda a transportá-la para uma outra dimensão do seu dia.  Sob a superfície, movia as mãos no ar de um universo líquido.  O sol, filtrado pelas camadas de água e sal, abria-se em luz como um cristal, rasgando em raios o verde que a cercava.

Estava afundando. Mas sentia-se orbitando no universo, com seus gestos pesados e lentos.

Não havia qualquer som. As ondas eram o balanço sentido no corpo ou o volume de água aumentado sobre sua cabeça.  Não havia horizonte. Além das extremidades do seu corpo, só o verde escurecido do mar:  acima, abaixo, em volta de si. Ela flutuava na água, batia os pés sem conseguir alcançar o fundo. Mas não se assustava porque via subirem as bolhas de ar na direção da superfície. E porque a luz do sol lhe servia de bússola.

Mais fundo era mais frio. Arrepiou-se, tremeu, abraçou-se. Notou que a lingerie branca encharcada se tornara transparente, lembrando-lhe as águas-vivas. Riu-se disso e movia os braços como se dançasse, tentando imitar o movimento que o animal faria. Brincava com os cabelos tumultuados, que se espalhavam a critério das ondas que iam e vinham.

Por baixo delas, nadou em direção à praia, vencendo a correnteza forte, ainda maior quando as ondas voltavam. Ela não hesitava. Voltava à tona para respirar e mergulhava de novo, pensando que, se não conseguisse chegar ao raso, boiaria, deixaria levar-se, até que o mar lhe devolvesse ao mundo.

Saiu do mar com os seios e o sexo desenhados contra o algodão das peças que usava.  Saiu do mar como se nua estivesse – além do corpo exposto, a mente livre.

Na caminhada de volta, o oceano lhe escorria pelo corpo até tocar a onda que voltava e a puxava pelos pés. Cada passo que dava, contrário a essa força, assanhava a água ainda presa aos cabelos, que também escorria de volta ao mar. Quanto mais ganhava a areia na direção de seus objetos pessoais, mais rápido se perdiam os elementos que a uniram ao mar. E o vento e o sol contribuíam para o apagar das pistas.  Em vão.

Desligar-se da experiência seria um processo lento, só concluído após reassumir a rotina de casa. Até lá, ainda guardaria o sal sobre a pele e trançado aos cabelos até a hora do banho. Ainda assim, mesmo de madrugada, com os olhos fechados na cama, lembraria os sons do oceano e a calma vivida. Como se seu corpo fosse concha que, encostada à orelha, reproduz o som do mar só porque deixou-se invadir pela água.

Fundira-se com o mar. Aprendeu que, dosando-se essa entrega, dosa-se o risco e a profundidade com que se perde no abismo. Que a infinitude que sentiu, nunca poderia ser ignorada. Ainda lembra-se disso quando, em terra, também precisa vencer correntezas e chegar à tona para respirar.

2 comentários em “imersa

  1. Nossa Ana!! Que profundidade nas palavras. Estava inspirada na época. Falou de um simples mergulho como ninguém. Quanta sabedoria. Quanta poesia. Estou orgulhoso de trabalhar com uma pessoa tão culta e tão sensível. Amo de paixão o mar e o sol. Mas, em toda minha vida, nunca vi um conto com tanta riqueza de detalhes.Meus parabéns.
    Não sei se já escreveu, caso não, quando, por ventura lhe vier inspiração semelhante, fale do sol. Dessa energia inigualável que tanto eu gosto tbm. Ia ter o mesmo prazer de ler. Um abraço e mais uma vez parabéns. Muito lindo. Retratou com maestria e com muita propriedade, o que se senti ao mergulhar nesse mundo de água salgada que, em fração de segundos, nos transporta para outra dimensão, nos trazendo, leveza, inspiração e muita paz de espírito. Bjs.

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