sobre o alumínio frio da janela

Se alguma vez houvera se aproximado dela, saberia distinguir entre tantas a sua voz. Mas sempre saía apressada, recolhia o material que espalhara na cadeira ao lado, ajeitava os cabelos displicentemente, como num ritual, todos aqueles dias em que haviam convivido. E raras vezes sorrira em sua direção, em retribuição, antes de deixar a sala.

Ainda assim, dona de uma fisionomia marcante – olhos grandes e expressivos contrastando com a boca pequena e rosada espalmada na pele clara -, ela o intrigava. Prestava atenção nela durante a aula, estudando reações e uma forma futura de aproximação, a conversa certa, a crítica que encontraria acolhida, e mesmo quando compunha a mesa de palestrantes a que ela assistia, descobriu-se distraído, adivinhando-lhe o perfume e a textura da pele.

Foi esse o dia em que se aproximou e a convidou para um café.

Nu, apoiado no alumínio frio da janela do quarto, enquanto fumava, o sorriso que lhe ofereceu, aceitando o convite, era sua lembrança mais forte na noite tranqüila e quente. Virando-se para o interior do quarto, enxergava o contorno dos objetos que o decoravam, os lençóis brancos sobressaíam na escuridão, cobrindo o corpo da mulher que, dormindo, movimentava-os aleatoriamente, compondo uma imagem abstrata e clara.

Deitou-se a seu lado, cercando-lhe o corpo com o seu, o sexo repousado sobre suas pernas, as mãos trançadas entre seus ombros e seios. Apertou-lhe como se, solto, pudesse cair no próximo instante, a lembrança viva da juventude não se dissipara com a fumaça, uma angústia veio com a recordação quente daquele dia.

De perto, no café ao lado da universidade, parecera-lhe mais pálida, uma fragilidade sugerida pela magreza e pelas pequenas olheiras sob os olhos vivos, esquecida no riso que se abria fácil e sumia atrás do muffin de laranja que comia. Não soube bem o que fazer com ela, se conversava sobre a palestra, se preparava o terreno para um encontro definitivo, se mordia-lhe o muffin ou os lábios.

Surpreendera-o seu humor cínico e mordaz, a facilidade com que as idéias lhe brotavam – dava para ver que aquele era o momento em que nasciam. E, embora quisesse calá-la num beijo, aproveitou a conversa, o cheiro quente de laranja era agradável, o barulho ao redor ignorado, sentiu-se confortável ali. Ela já não parecia ter pressa. Ele consultava o relógio e o tempo voava. Ela enroscava os cabelos no dedo indicador, cobria o entorno com seu olhar curioso, reiniciava outro assunto sem importância conseguindo ligá-lo a uma consideração profunda, ainda ensaiada, esperando dele a redação final para a teoria recém inventada. Apenas divertia-se, sem esperar muito dela e sem escrever-lhe os textos encomendados, apenas rascunhando-os com ela ao vento, sem registros nem compromisso algum.

Caminharia à casa enebriado pelo aroma dos cabelos dela – pudesse, teria-os tocado – e por sua voz ainda indistinta, misturada a outras vozes do café – eram muitos os sons, agora, do lado de fora, percebia – mas as palavras destacadas e precisas.

Enroscado no corpo da mulher, incomodou-lhe o ambiente nervoso do café no qual, anos antes, conseguira isolar-se, o que não acontecia mais, não sobre a cama, no quarto escuro, as janelas abertas para a noite, a mente trabalhando de forma aflita, a memória o perturbando. A mulher lhe passava as mãos nos cabelos, oferecendo-lhe a delicadeza como paga pelo direito a dormir e abandoná-lo ao silêncio. Estranhava-lhe o cheiro doce mesclado ao do suór, após amarem-se, rejeitava-lhe o perfume e a respiração que, cortando o silêncio do quarto, misturava-se aos sons do café, afastando-os.

Aflito, voltou ao ponto em que a deixara esperando a carona da irmã, decidido a declarar-se. Mas já a tinha perdido no segundo anterior, ainda acenando para o carro que se afastava – por que não lhe beijara os lábios rosados, trocando salivas de laranja e café? -, já a tinha perdido ao tomar o caminho da casa onde arquivaria seus impulsos.

Acordou sobressaltado, o lençol molhado do suór do corpo exposto ao calor carioca. Ventava muito, ventava quente, o vidro da janela estremecia, entoando uma melodia perturbadora. Sonhara que a observava no banho, através de uma janela que havia do banheiro para o quarto onde nunca esteve com ela. Ela sabia, fingia o contrário, mas sabia-se vista, aproveitando seu olhar como adorno a seu corpo, que, esfriado pela água que a banhava, aquecia-se pelo desejo alheio. Acordou colado ao lençol, assustado entre os sons que o vento fabricava, perdido na manhã que invadiu o quarto excessivamente branco. A mulher permanecia desacordada, uma noite inteira desacordada – uma vida? -, a claridade ofuscava, quase agredia, e irritava-o constatá-la inconsciente e isolada das sensações que o torturavam.

No dia seguinte, ela lhe sorriu mas portou-se como quem nunca houvera dividido café ou palavras. Ele a selara com uma intimidade fresca, correra, na véspera, passos em sua direção entre o trânsito nervoso, mas ela caminhou até a porta sem hesitação, os livros grossos sustentados pelo braço fino que agora reparara melhor. Frágil, ele pensava notando-lhe os braços, frágil como minha coragem. Discreta, ele ainda pensava embora ela já houvesse partido, discreta como meu desejo, sufocante desejo que se disfarça. Indiferente, ainda desligado dos outros alunos que ocupavam ruidosamente as carteiras da sala, indiferente a ele que não tinha nada a oferecer além das palavras cheias de significado nas aulas, sem aplicabilidade no mundo fora dali.

Desperta, a mulher deu com ele sentado à beira da cama, olhos marejados, a feição anunciando uma notícia ruim. Tocou-lhe os ombros delicadamente, oferecendo carinho sem saber por que precisava fazê-lo, esperando o anúncio que cortaria a manhã ensolarada. Ele a abraçou, pequeno em sua dor, silencioso. Poupando palavras à mulher, garantiu para si mais afagos antes que ela se levantasse para o início do dia de trabalho, indiferente à dor que não fora anunciada.

As palavras que entregou a ela nunca as recuperou, nem mesmo a felicidade que provocaram naquele dia passado. Não pôde repetir nenhuma delas em frente à turma que o aguardou recompor-se para iniciar a aula, ainda não as poderia repetir à mulher que partira para o serviço antes que ele fosse resgatado. Ela as levara para algum lugar onde nunca fora convidado a estar, onde jamais estivera até aquela madrugada em que lhe saltaram da memória anunciando, sem qualquer consolo, uma vida perdida.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s