maquiagem

É nas primeiras horas da manhã que seu equilíbrio mais se arrisca.

Saída do banho, os olhos ainda inchados de sono, a mulher passa um algodão umedecido em loção no rosto e obriga-se a despertar para os detalhes da fisionomia, antes de desenhar a maquiagem sobre a pele.

Neste momento, observa sua imagem refletida no espelho do banheiro, ainda levemente turva por causa dos vapores de calor no ar. Desliza o algodão sobre as pequenas rugas no canto do olho e as linhas mais marcadas sobre a testa. Nota alguns detalhes alterados mas, como ninguém os comentou, imagina-se, ainda, protegida de um diagnóstico definitivo. Afinal, ninguém se aproxima tanto dela quanto ela do espelho na hora de maquiar-se.

Todas as manhãs, ela se impõe o compromisso de estudar esses pequenos sinais, para que disfarce melhor a olheira sob o olhos ou para que os delineie e o olhar se levante ou o  rosto se ilumine.

Enquanto escolhe a base que cobrirá a pele com disfarces e colore as pálpebras com um tom quase da própria cor da pele, tenta criar a ilusão de uma nova casca sobre a antiga – como uma máscara sobre o próprio molde que não pareça máscara mas a bela e crua naturalidade.

Escultora da sua beleza, enquanto espalha os cosméticos sobre o corpo, sente-se, frequentemente, mais frágil diante da elasticidade modificada da derme. E percebe: algum vigor já se perdeu. O olhar atento e curioso disfarça os sinais mas não altera a marcha diária do tempo. Teme, um dia, não reconhecer-se na imagem espelhada.

Respira. Ainda não perdeu a beleza. Ainda não envelheceu de fato. Nem teme a solidão que, dizem, acompanha o apagar físico do corpo – ilude-se com a idéia de que a mente manterá acesa a alma, se o corpo enfraquecer.

Ainda assim, angustia-se todas as manhãs. No ambiente agora desembaçado, vê além do espelho. Enxerga sob seus traços os projetos ainda não realizados. A vida que existe além da sua capacidade de vivê-la. Perde-se, por um momento, na sensação de que, dali para frente, terá menos tempo – se não porque há limites de anos para viver-se, ao menos porque caminhará em passos cada vez mais lentos.

Esticando os cantos do rosto e virando-o de um lado para o outro para verificar os acertos da maquiagem, a pressão de viver mais do que já tenha vivido lhe aperta a garganta.

Mas sai do banheiro e apaga a luz. Mergulha em decisões mais fáceis. Escolhe um vestido que lhe marque a cintura e cujo decote lhe valorize, sutilmente, os seios. Através do espelho do armário, um pouco mais afastada da sua imagem, vê-se de corpo inteiro, checa o caimento da roupa e decide, por fim, se prende ou se solta os cabelos.

Sai de casa e envolve-se nas obrigações e nas risadas rotineiras. Esquece, por completo, a ansiedade da manhã. No fim do dia, limpa a pele, desconcentrada, com os olhos fixados na cena de novela. E dorme após desligar a TV.

Até que o despertador toque, o dia seguinte comece e ela reinicie seu pequeno ritual de embelezamento – banho, tônico, maquiagem –, sua mente repousa tranquila.

Entretanto, dia após dia, de frente para o mesmo espelho, sempre pensa como custou a ela notar a velocidade do tempo. E sempre conclui que, ironicamente, a juventude se vai perdendo nos momentos em que nos poupamos (e ao corpo) de viver.

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